Editorial
Tribunais de exceção
As imagens divulgadas no último final de semana, de dois homens sendo barbaramente torturados no depósito de um supermercado em Canoas porque estariam furtando carne, assustam. Além da violência física, há na cena elemento importante: o olhar praticamente impassível do gerente do local, que em raros instantes interrompeu tal postura apenas para trocar sorrisos de satisfação pelo que ocorria à sua frente.
Esse caso do supermercado na região metropolitana de Porto Alegre evidencia o quanto a violência está incorporada ao cotidiano brasileiro. Confirma o que sociólogos vêm diagnosticando há algum tempo como problema a ser enfrentado a partir de uma mudança de cultura, visto que cada vez mais cidadãos incorporam ao seu entendimento o fato de que podem – e até devem –, diante da omissão do Estado, vigiar e punir eventuais desvios ao seu redor.
O crime cometido em Canoas, por exemplo, embora seja chocante pelo fato de a vítima sofrer múltiplas agressões de supostos seguranças privados sem que tenha sequer esboçado reação, não é único. Logo, tampouco surpreendente. Basta lembrar que há dois anos, também em um supermercado, este em Porto Alegre, João Alberto Silveira foi espancado até a morte. Absurdo que gerou repercussão ainda maior porque teve como elemento agravante da crueldade o contexto de a vítima ser negra e o homicídio ter ocorrido na véspera do Dia da Consciência Negra. Naquele momento, protestos e ações de repúdio ao estabelecimento e à falta de controle público sobre a forma como agem empresas de segurança privada se disseminaram. Vê-se que de pouco adiantou.
Conforme investigações sobre as recentes agressões em Canoas, a firma contratada para prestar o serviço de segurança não teria registro junto à Polícia Federal, o que é exigido por lei. Tratar-se-ia, portanto, de trabalho irregular. Talvez nem fosse exagero considerar como uma espécie de milícia. Os métodos não deixam de ser semelhantes. Aqui mesmo, em Pelotas e região, é bom lembrar que já se viu algo do tipo há alguns anos, felizmente descoberto e com seus integrantes punidos.
Como bem lembrou em uma de suas manifestações sobre o episódio de Canoas o delegado Cassiano Cabral, responsável pelo inquérito, o que se estabeleceu no depósito do mercado foi um tribunal de exceção. Algo inadmissível. Ainda que os atos dos torturados de Canoas fossem mais graves do que furtar picanhas, nada justifica a barbárie, a justiça privada. E, para isso, cabe ao Estado levar a sério a forma da Lei e aplicá-la, devidamente, a quem comete crimes. Dos mais leves aos piores, como o destes bandidos torturadores. Um passo importante que, somado a uma política de paz e justiça social, pode impedir que em pouco tempo estejamos novamente falando sobre isso.
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